O silêncio sábio e a calmaria na face da sua mulher era uma das poucas coisas que o confortava diante de toda a situação. Estar no Chile ou atravessando fronteiras por aí e ocupando-se por onde passava o fazia preocupar-se com a nação que deixou para trás com pesar. Estar em um lar emprestado, sabendo que poderia ficar em casa não fosse todas as coisas que isso implicaria, causa-lhe certa histeria e inquietude.
No entanto, não era hora de se martirizar. Havia muito a ser feito, principalmente quando várias experiências iriam de certo arejar sua mente e fazê-lo ver a educação de maneira profunda. Suspirou, sentado na cadeira de sua escrivaninha. Com a caneta na mão direita e o papel branco rabiscado na outra, as premissas a que se iria propor o seu rascunho de livro giram dentro da sua mente.
Levantou questões de ensino não apenas conteudista, mas que tivesse em vista o compartilhamento da dialética. Que o estudante pudesse contribuir junto a sua cultura popular para o conhecimento e formação. Além disso, que o professor trouxesse o conhecimento acadêmico, porém desenvolvesse junto ao aluno aprendizados que transforma e sensibiliza o ser humano, utilizando os ensinamentos na prática.
Com tal preposição, em muito pode ser trabalhado, cogitou.
Depois de boas horas no mesmo lugar, a pensar, Paulo decide pausar o seu foco e tomar um pouco de água. Já era tarde. Antes que pudesse levantar-se e deixar a cadeira para trás, a voz do seu filho Lutgardes ecoa pelo escritório. Meio preocupado com alguma coisa, andava decidido até o pai.
- Pai, me ajude aqui, eu não estou entendendo essa matéria e a prova é amanhã! - O garoto murmurou a última frase arregalando suas orbes da face e trouxe o livro, possivelmente de ciências, que passara as últimas duas horas lendo.
- O que é? - O Freire mais maduro indagou, observando atentamente o seu garoto.
- Tenho que aprender todos os ossos da galinha e como é o corpo dela por fora. - Lute, como era apelidado, explicitou a causa de seu desconforto e seu pai negou um pouco com a cabeça, olhando as horas no relógio de pulso.
- Meu filho, pare de estudar, você não vai aprender nada assim, já são mais de dez horas, você está cansado, precisando dormir, amanhã acorde bem cedo e vai ver lá fora, no quintal, como é uma galinha, as penas, o bico… e depois você vai fazer a prova. - Instruiu ao menino de cabelos negros. Seria ótimo que as galinhas que estavam sendo criadas para o abate e depois virarem galinha a molho pardo pudessem servir como ensino prático.
- Tudo bem, obrigado pai. - O menino soprou-lhe e ele finalmente saiu de onde estava para passar as mãos pelos cabelos do filho e desejar-lhe boa noite.
Viu Lute despedir-se e partir para a cama. Foi então que uma pequena e infame tristeza temeu abater-lhe. Enquanto via seu filho caminhar com suas pequeninas pernas pela casa a fim de encontrar seu quarto, sua mente traçou a inocência do garoto que nada sabia a respeito do caos que o pai passara. Era difícil para Paulo contar aos filhos mais novos - também o Joaquim - do porque que ainda estavam no Chile e não no Brasil, principalmente para Lute, já que ele sempre foi resistente a mudanças e emocionalmente se sentia desconfortável, preferindo quando mantinha-se num lugar permanente.
Gastou horas do seu dia imaginando como contaria que foi preso, enquanto achavam que ele “viajava”, e que foi posto para fora do próprio país quando são tão novos e impossíveis de entender tal explicação. Passou as mãos no rosto e então vislumbrou sua esposa descendo as escadas. Sorriu para ela, que retribuiu prontamente. Percebeu que ela o esperava para que fosse dormir e suspirou indo se hidratar para poder acompanhá-la e ir para a cama. O olhar que ela mandou-lhe quando voltou da cozinha parecia confortá-lo mais uma vez, e decidiu então que aguardaria o momento certo, afinal, para que pudesse deixar tudo às claras.
Nota da autora:
Hellouiss! Trouxe esse texto em homenagem à Paulo Freire. É uma minibiografia romanceada, em muitos fatos tentei ao máximo ser fiel (transcrevi até mesmo um momento igual ao que o filho dele retratou em uma entrevista), mas óbvio, talvez nem tenha acontecido dessa maneira. No fim, quis trazer a angústia do exílio. Alguns ideias do Paulo Freire foram colocados de maneira sutil para realçar seu psicológico e enviesar com a figura de sua mulher ajudando-o a suportar tudo. Bem, essa era uma atividade proposta pelo meu professor de português, que na verdade queria um cordel ou poesia e, como não é o meu gênero de escrita, no meio da elaboração decidi também fazer essa narração para sentir-me melhor. Enfim, thanks pela leitura e até a próxima! <3
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Obrigada pela leitura! <3