OBS: conto feito com base e inspiração ao de Ignácio de Loyola Brandão: "O homem cuja orelha cresceu"
No visor do computador eu vi aparecer: “Seu arquivo foi enviado e postado com sucesso”. Suspirei orgulhoso, mas fadado demais para sorrir. Olhei para meu relógio no pulso, que mal tive tempo de retirar, e as 01:27 da madrugada já serpenteava, fazendo com que eu me espreguiçasse, acostumado com tal horário. As costas estalam e garanto que se Flora estivesse acordada, reclamaria desse meu vício, denominado por ela de feio.
Desliguei o computador de qualquer jeito e tirei os fones onde a forte intensidade do som foi-se embora sem pensar duas vezes. Uso-o a alguns decibéis acima pois não escuto muito bem pelo ouvido direito, já que no trabalho presenciei uma cena de assalto e quase fui baleado. Confesso que o medo de ser atingido bateu, porém consegui noticiar os fatos em rede nacional. Senti que poderia ter sido melhor, no entanto meu ouvido zumbia e tornava o eco da rua um caos maior do que realmente era. Minha esposa sempre e sempre reclama dos fones, diz que qualquer dia desses vou me acordar "mouco". Eu penso em respondê-la, dizendo que eu já sou mouco, mas não quero arranjar uma briga por corrigir seu português, que não é, no final das contas, o seu forte.
Fui até a varanda do apartamento e puxei do bolso a carteira de cigarros, que veio junto ao isqueiro. Suguei o pó em chamas para dentro do pulmão e, embora tenha lido centenas de artigos sobre como isso faz o órgão ficar queimado igual tição, ainda assim as boas energias que ele me proporciona para que eu não perca o ritmo do meu ciclo de trabalho é acima dessa consequência. Qual é? Eu não fiz quatro anos de faculdade para no fim deixar minha mente lúcida e sobrecarregada me fazer perder tudo, esse pequeno e branco cilindro preenchido de nicotina é minha ressalva.
Saí dos meus devaneios quando algo me fez pender a cabeça sem razão. Achei aquilo estranho e fiquei ereto. Novamente o lado direito da minha cabeça ameaça cair para o lado. Por instinto, passo os dedos pela orelha e solto um palavrão. A minha orelha está absurdamente grande. Ando meio atrapalhado até o espelho e estou chocado com a visão que meu olhar captura. O lóbulo parece querer beijar meu cotovelo e sua flacidez me lembra a pele caída de uma senhora que entrevistei certa vez. Tiro a atenção da minha orelha e noto que durante esse tempo minha expressão manteve-se assustada. Meus olhos estavam enormes, meu queixo caído.
Sem saber direito o que fazer, andei com certa dificuldade até minha escrivaninha a procura de uma tesoura afiada. Atordoado catei por toda mesa, sem sinal nenhum dela. Suspirei frustrado e fui até o quarto de hóspedes onde minha mulher guardava uma máquina de costura mais velha do que os pré-históricos. E o pior! Ela nem sequer sabe costurar! Ficou com essa quinquilharia apenas porque queria manter algo da minha sogra, já falecida, por perto. Cheguei no quarto e abri uma espécie de caixotinho onde fica as linhas, retalhos de pano e botões na esperança de que também existisse uma tesoura.
Com as mãos trêmulas revirei tudo na mesa onde a máquina estava e, então, o objeto metálico caiu no chão, quase furando o meu pé. A bagunça toda acabou por acordar minha esposa, que gritou revoltada por mim, mesmo já sendo quase duas da madrugada. Inspirei e expirei porém nenhuma palavra saía para tranquilizá-la. Eu estava horrorizado demais. Decidi pegar a tesoura e cortar logo de uma vez o pedaço da orelha, antes que ela visse. Abaixei-me para capturar o objeto e voltei a ficar de pé, cambaleando para o lado. Maldita labirintite! Me firmei no chão após alguns segundos e pus os dedos no buraco na tesoura.
Meu sangue pulsava nos lados da minha cabeça e meu coração estava acelerado. Ergui e abri o objeto cortante. Segurei um lado da orelha e contei até três. Fechei os olhos e…
- NÃO! - Minha mulher gritou na soleira da porta.
Abri os olhos assustado e larguei a tesoura no chão. Flora estava branca feito papel. A vi correr até mim e me colocar sentado na cadeira mais próxima. Sem reação alguma, nem pensei em protestar ou ao menos falar alguma coisa.
- Como aconteceu isso, José? - Indaga com as mãos na cintura.
- Eu… não sei. - Respondi em um tom de voz mais baixo do que normalmente uso. Ela retirou as mãos da cintura e mudou de postura, as cruzando. Após isso, andou de um lado para o outro, onde parecia pensar profundamente em algo, ou apenas processar o novo formato que minha orelha passou a ter.
- A sua orelha está grande demais. - Flora concluiu — o que infelizmente eu já sabia. Ela sempre tem essa lerdeza quando acorda.
- Eu já sei dis...
- E com certeza foi você usando esses fones vinte e quatro horas por dia. - Cortou-me, afirmando em tom acusatório e parando de andar para apontar o dedo, em riste, em direção aos fones em cima da escrivaninha.
Quase a repreendi dizendo que não foram os fones, mas desisti pois com certeza ela iria defender sua "teoria" com unhas e dentes. Eu sei que o máximo que poderia acontecer de consequências pelo uso exacerbado era eu ficar surdo, não ter minha orelha flácida e quadruplicada de tamanho.
- Depois volta ao normal… - Tentei (apenas tentei) tranquilizá-la, embora eu estivesse apavorado.
- Eh… sei não, hein. Acho que vou ligar para Ferreto.
- Para quem?
- Um amigo, ele é médico. - Suspirou, agarrando o celular que estava na mesa.
- Não! Ninguém pode ver isso. - Protesto enquanto ela digita os números - E, eu… eu vou ficar bem.
Só a ideia de imaginar alguém a mais vendo isso e julgando que eu fosse uma aberração é o suficiente para eu querer cavar um burraco e me esconder nele. Eu não posso ser exposto assim!
- Não saia daí’. - Ela sussurra e vai para o quarto, para que eu não atrapalhe a conversa, provavelmente.
Ela ignorou tudo. Pensei em impedi-la, no entanto desisti e mantive-me sentado. Sei muito bem que quando ela coloca algo na cabeça ninguém consegue tirar, oh mulher teimosa! Acho que fiquei tão absorto no nada que magicamente o tal Ferreto materializou-se em minha frente, junto à minha esposa. Ele não estava de jaleco ou algo do gênero, mas como Flora disse que ele era médico, quem sou eu para contradizê-la, não é?
- Como você está? - Inquiriu calmamente e grelei' os olhos para o médico, espantado.
- Você não está assustado?!
- Casos assim estão sendo mais frequentes. Não sabia? - Questionou comprimindo os lábios e lançando um rabo de olho para Flora.
- Ele vive preocupado demais no trabalho e usando esses fones o dia todo. É óbvio que não sabe.
- E por acaso você sabia e não me disse nada?
- Não vamos brigar na frente do Ferreto. - Ela desconversou. Como assim? Tem algo muito errado acontecendo aqui!
- Tá', mas meu trabalho é estar por dentro de tudo. Como não sei de nada?
- Em geral, o governo não quer números altos sobre isso…e, como você não sabe, irei explicá-lo. A causa disso é ouvir informações, notícias, dados e não conseguir equilibrar com a vida pessoal. Infelizmente é um surto que está ocorrendo cada vez mais, principalmente com a quantidade de tragédias que estão acontecendo mundo afora.
- O que faz pra voltar ao normal?
- Se desligue do mundo. Faça exercícios, coma bem e o principal: assista filmes nostálgicos. Se sinta vivo, simples. - O médico respondeu cirúrgico.
- Quanto tempo demora para voltar?
- Uma semana, mais ou menos. Você ficará bem.
- Não tem nada a ver com esses fones? - Flora ressurgiu, perguntando meio desapontada pela sua hipótese, que certamente está errada.
- Ah, tem um pouco sim. - Ele falou pausadamente, um pouco contrariado, devo dizer. - Não abuse dos fones, mas em geral é sobre o que já falei. - Ele pisca, ou pelo menos eu acho que pisca, para mim.
- Eu disse que ele iria ajudar! Obrigada Ferreto. Eu te acompanho até a porta.
Ele se despediu com um aceno e nem ao menos tive forças para devolver-lhe o cumprimento. Minha mulher levou-o até a porta, tocando seus dedos nos ombros dele, devo pontuar. Eles desapareceram da minha visão e então joguei a minha cabeça para trás, ainda sentindo o peso da minha orelha querer mudar os movimentos coordenados pela mente. Fechei os olhos e suspirei, pensando na desculpa que terei de dar na empresa e nas muitas outras coisas que terei de fazer para que tudo volte aos eixos.
Em um pulo, a realidade vai-se como água, de maneira fluida e sem como agarrar-me a ela. Acordo com minha mulher balançando-me. Abro os olhos vagarosamente, acostumando-me com a luz. Em um estalo, minha mente lembra-me do sonho, fazendo-me pular da cadeira atordoado e correr para o espelho, para verificar se está tudo bem com a minha orelha. Chego lá e vejo-a intacta.
Flora chega perto de mim logo depois e bem estressada. Reclama que já perdeu as contas de quantas vezes eu apaguei em cima do notebook e pontua a minha postura toda envergada enquanto dormia. Observo-a pelo espelho com sagacidade e, mesmo que seja um sonho, não custa nada perguntar. Paro minhas mãos no mármore da pia e murmuro apenas três palavras, que a faz subitamente perder as montanhas de palavras, as quais direcionava em minha direção na forma de lamúrias:
- Quem é Ferreto?
Quem é Ferreto?
ResponderExcluirFica a dúvida aí ;)
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